(Lisboa) Passei a ter Geografia quando cheguei ao 7º ano. O 7º ano implicava uma mudança e também uma mudança de piso no edifício principal da Escola Salesiana, no Funchal. Entrávamos pelo rés do chão que não era bem um rés do chão mas na prática era. Na primeira metade dos anos noventa do século passado vínhamos da oração da manhã ou de um intervalo qualquer ao longo do dia. Subíamos até ao andar da Secretaria e da Cantina mas se não fosse hora de almoço, só de passagem, poque os pisos das salas de aula eram mais em cima, nos dois andares seguintes. No segundo andar ficavam as salas das turmas do terceiro ciclo, 7º, 8º e 9º anos ou também chamado de Unificado. No terceiro andar ficavam as salas do 5º e do 6º anos e no quarto andar, se a memória não me falha, a sala de música de um lado e do outro os quartos dos senhores padres que viviam na escola. Não tenho a certeza mas acho que também existiam quartos de dormir no terceiro andar do outro lado das escadas centrais. Parecia que este último andar, só com salas de janelas altas só era usado regularmente para as aulas de música. Havia muito espaço por aqui e muitas outras salas para além daquelas que usávamos. Havia também uma sala muito especial neste quarto piso: a sala dos computadores em que o Sr. Padre Vieira que nunca foi meu professor de matemática, nos levava a conhecer o admirável mundo novo dos computadores. Na altura eram essencialmente jogos. E eu adorava aquele mundo virtual. Mais tarde, cá em baixo na Escola Francisco Franco havia uma sala semelhante, a sala da internet. Voltando ao tema principal do texto, a disciplina de Geografia. Tive Geografia durante os três anos do Unificado. No 7º ano dado por uma professora jovem e alta cujo nome já não me lembro mas se as opções fossem dadas um teste de escolha múltipla estou convencido que acertava na resposta. Ela não dava muita confiança mas também não era autoritária, sabia gerir muito bem a turma. Nos dois últimos anos do ciclo, por um professor antigo oficial da marinha, mais velho, cujo nome era Pimenta de França, mais uma vez recorrendo-me da memória. O senhor professor tinha um ar austero e contava-nos as suas experiências ao redor do mundo nos navios onde trabalhou. Com a sua mão direita aberta batia no seu ombro esquerdo e assim ficava para mais uma explicação. Sabem, se souberem, aquela analogia do primeiro episódio da série Cosmos de Carl Sagan, em que é comparada a história do universo como se fosse um ano de 365 dias e em que o Homo Sapiens só aparece nos últimos instantes do último dia do ano? Foi ele, o Professor de Geografia que me contou pela primeira vez. A mim e a toda a turma. Só anos mais tarde vi a série Cosmos e redescobri essa memória. Na verdade li o livro antes de ver a série. É um daqueles professores que nos fica na memória. Ele ditava os apontamentos nas aulas juntamente com explicações à parte, com histórias e comentários sobre a actualidade. Ele detestava os concursos de televisão à noite como a
Cornélia. Na Madeira dos primeiros anos da década de noventa do século passado só havia um canal de televisão aberto para toda a população, a RTP-Madeira. A RTP-Madeira na altura trazia um pouco do mundo para dentro de casa de cada um de nós. Hoje a RTP-Madeira leva-nos a casa o arquipélago e as ilhas porque existem muitos outros canais e vias para nos ligarem ao mundo. Existem talvez demasiados. A TV Cabo chegou em 1992 mas nem toda a gente tinha em casa esses canais. Começaram também a surgir as antenas parabólicas mas a Ilha não era muito focada pelos satélites que transmitiam televisão. Com antenas de 90 ou 120 cm não se apanhavam muitos canais. E porquê que ele ditava? Para que os alunos tivessem acesso às explicações correctas sobre a matéria. Creio que foram nessas aulas que comecei a me interessar pela Astronomia. Ele explicou antes de eu saber o que era, a Eclíptica. A definição que encontram no Dicionário da Priberam não é muito clara e não me parece que alguém que não saiba o que realmente é a Eclíptica perceba, da sua leitura. A Eclíptica é uma linha imaginária na esfera celeste, é a linha que o sol percorre, no céu, ao longo do ano. Foi assim que ele explicou e foi assim que eu percebi o que era sem saber praticamente mais nada de Astronomia e é essa a definição clara. Nos testes o Professor Pimenta de França exigia respostas iguais às que estavam nos apontamentos para as suas perguntas. Não que não existissem outras formas de responder mas porque o aluno assim, se tivesse dificuldade em encontrar uma outra forma de responder poderia se socorrer naquele texto sabendo que estava ali toda a informação necessária para se sair bem na prova. Não sei se um professor como ele teria ainda lugar no actual sistema de ensino, não sei se ainda existirão professores como ele no actual sistema de ensino. Na verdade eu já não conheço o sistema de ensino. As variáveis tecnológicas dos últimos anos vieram alterar a maneira como comunicamos entre nós, vieram trazer a ansiedade de estar sempre ligado e sempre a par do que está passar em cada momento. Somos todos produtores de conteúdos directa ou indirectamente, se não formos produtores apareceremos no conteúdo de alguém certamente. E como produtores de conteúdos estamos obviamente interessados em ver os nossos produtos consumidos por alguém, gostado por alguém, partilhado por alguém, e isso gera ansiedade. No final de um dia de aulas nos Salesianos arrumava as minhas canetas, cadernos, livros e lápis na mochila e descia acompanhado a Rochinha no autocarro 32, ou a pé. Cá em baixo, no centro do Funchal, despedia-me dos amigos depois de uma conversa animada sobre o que se tinha passado no dia ou na televisão no dia anterior e seguia para casa. Deixava de estar contatável até ao dia seguinte de manhã, na paragem do 32, bem cedo. Se tivesse em casa poderia receber uma chamada telefónica para o número fixo de telefone que servia todos quantos viviam na casa e tinham acesso ao aparelho. Hoje em dia estamos cheios de fios ligados a nós, fios imaginários que podem ou não pesar sobre os os nossos corpos, tem tudo a ver como lidamos com as ferramentas que temos ao nosso dispor. Muitas vezes até gostaríamos de estar menos ligados ao mundo em certas ocasiões e só não estamos porque pensamos que vamos perder algo de muito importante. Por outro lado a informação disponibilizada hoje num qualquer aparelho com ligação à Internet é muito mais do que aquela que tínhamos acesso na biblioteca da escola, muito mais que na biblioteca municipal. Nos Salesianos só tivemos biblioteca no meu 7º ano. Ficava longe e se estivesse a chover apanhávamos uma molha valente pois para chegar lá só mesmo pelo exterior dos edifícios. Era preciso sair do edifício central e caminhar até ao final do da primária, passar pelas oficinas de trabalhos manuais de madeiras e pela marcenaria, passar do lado exterior, com a clemência ou não da meteorologia. Como seria uma aula com o Professor Pimenta de França no ano de 2020? Seria uma experiência interessante possibilitada pela minha imaginação colhendo a informação que o estreito túnel do tempo ainda me permite obter e transportando esses dados para os tempos actuais. Creio que o Professor já não está vivo mas talvez todos os seus alunos da turma C ainda estejam.