sábado, julho 05, 2025

CADERNETA DE CROMOS

Airbus A300 - MSN 770 - D-AZML

(Lisboa) Há ideias que nascem de perguntas simples. Esta surgiu-me depois de algumas sessões de spotting, daquelas em que o céu se transforma num palco de surpresas. Gosto de saber o que vem mas às vezes, muitas vezes, gosto da surpresa. Ver surgir vindo não sei de onde um A320 com pintura de décadas antigas, um 737 com uma cauda invulgar com a figura de um pintor ou um artista conhecido, um Embraer com nome da minha terra. Todos diferentes, todos únicos. Os aviões são mesmo todos diferentes. E então pensei: e se existisse um álbum de cromos com aviões? Na verdade eu não sei se existe, se calhar existe. Nunca vi essas cadernetas a serem distribuídas à porta da escola dos meus filhos, ou no expostas no supermercado. Uma caderneta onde estivessem, por exemplo, todos os aviões da TAP, os novos, os antigos, todos, desde o arranque da companhia, há dezenas de anos atrás. Estarão esses aviões todos fotografados? Mesmo os mais antigos?

A aviação não é feita de repetições. Por muito que vejamos o mesmo avião todos os dias, há sempre um detalhe que o distingue, a matrícula que também muda se mudar de dono, o nome, o esquema de pintura, a companhia, a história por trás, os seus últimos destinos, para onde vai a seguir. Uns são estrelas internacionais, outros figuras quase anónimas a cruzar o céu. Mas todos têm direito ao seu lugar na coleção.
 
Lembro-me mais ou menos bem de uma coleção que fiz nos anos 80. A caderneta tinha o nome de “Maravilhas do Mundo Automóvel”. Tinha um Ferrari vermelho na capa, uma marca que nem todos podem ambicionar ter mas isto de ter e poder ter é tudo muito relativo, há quem tenha sem poder ter e há quem possa e não queira ter. Cada pacotinho de cromos custava 25 escudos na altura e trazia quatro ou cinco cromos, brilhantes, de carros de todos os tipos. A caderneta estava dividida por categorias e a meio do livro, como uma surpresa especial, vinham páginas com alguns circuitos de corridas: Estoril (em Portugal), Interlagos (no Brasil), Monza (na Itália), Spa-Francorchamps (na Bélgica), Nürburgring (na Alemanha), Indianapolis (esta última não era da Fórmula 1, mas aparecia, talvez pelo fascínio da oval americana).

Foi a minha primeira coleção a sério. E como em todas as coleções, havia sempre os repetidos que se vão acumulando. Fiquei com uma caixa cheia de cromos que nunca consegui trocar. Nem sequer sei se alguma vez consegui trocar algum, não me lembro, acho que nenhum colega meu fazia coleção, aquela coleção. Lembro-me até de alguns números que vinham vezes sem conta. Era quase frustrante, ter muitos de uns e nada de outros, mas ao mesmo tempo fazia parte do jogo. A magia estava lá: abrir o pacotinho, a expectativa de encontrar o que ainda não tinha, a alegria de colar um novo cromo no lugar certo.

A minha mãe, que me dava o dinheiro para comprar esses pacotes, achava aquilo um desperdício, nunca me disse isso mas eu sabia que ela achava isso. Nunca percebeu muito bem o fascínio. E eu também não sabia explicar. Só sabia que aquilo me fazia feliz, preencher a caderneta, ambicionar pelos que faltam que ficavam cada dia mais valiosos.

Hoje, quando compro cromos para os meus filhos, sejam de futebol, ou de outro tema percebo tudo. Percebo que não é só colar autocolantes. É criar memórias. É aprender nomes, geografia, histórias. É fazer parte de algo maior. E sim, é uma lição de persistência, de troca, de frustração e recompensa.

Na altura não havia redes sociais, nem grupos de trocas no Facebook como há agora. Muito mais fácil completar as coleções hoje em dia do que no final dos anos 80 do século XX. Trocar cromos era uma arte presencial, quase tribal. Acontecia no recreio da escola, com os colegas, e pouco mais. O que se conseguia, conseguia-se ali. E talvez por isso, cada cromo colado tinha valor.
 
O Avião de hoje, da DHL, tem quase trinta anos. É um Airbus A300, MSN 770, de matrícula D-AZML. Presta homenagem à Capital Europeia da Cultura 2025, Chemnitz. Estava a aterrar em Lisboa.
 
Referências: